Baiana lançou mais de 40 registros inéditos ao longo da sua carreira, tendo passeado magistralmente entre a contracultura e o popular e entre gêneros que vão da MPB à música eletrônica.

Gal Costa partiu em 2022, mas deixou como legado 58 anos de uma carreira brilhante com 44 discos inéditos lançados. A baiana foi - e ainda é - uma das maiores intérpretes da música brasileira de todos os tempos. Foi ela que, quando Caetano e Gil estavam exilados fora do Brasil, carregou a Tropicália e a contracultura nas costas.

Gal nunca se calou diante das injustiças ou da Ditadura. Sua carreira foi marcada por uma postura subversiva, corajosa e inovadora - ainda que em muitos momentos pop. Mostrando que é possível unir o popular à vanguarda - e ainda assim ser sofisticada.

Uma das características mais marcantes da carreira de Gal é que ela sempre se manteve uma metamorfose ambulante, tendo passado pelos mais diversos gêneros, sem medo de se reinventar. Prova disso é que em seu último álbum lançado, Nenhuma Dor (2021), ela se uniu com nomes da nova geração como Tim Bernardes, Zé Ibarra e até mesmo com o rapper Criolo. Diante de uma discografia tão diversa e rica, separamos nesse panorama 8 discos essenciais da carreira da cantora baiana.

Gal Costa (1969)

Antes de lançar seu primeiro disco solo, Gal Costa já havia participado dos icônicos Domingo (1967), ao lado de Caetano Veloso, e Tropicalia ou Panis et Circensis (1968), disco que deu o start inicial ao movimento tropicalista brasileiro. Porém é em Gal Costa (1969) que ela consegue pela primeira vez imprimir seu estilo pessoal, que estava sintonizado com uma atitude rock’n’roll, distante da bossa nova mais “certinha” da época.

Com arranjos de Gilberto Gil, Rogério Duprat e Lanny Gordin e um repertório que vai de Jackson do Pandeiro a Roberto e Erasmo Carlos, o álbum foi subversivo para a época do início ao fim. Os momentos orquestrais misturados a riffs de guitarras psicodélicas e os vocais impecáveis de Gal fazem deste um dos melhores discos da carreira dela. Não dá para deixar de citar também um dos pontos altos desse álbum: Divino Maravilhoso, um grito contra a Ditadura Militar da época: “é preciso estar atento e forte, não temos tempo de temer a morte”.

Ouça: Não Identificado, Divino Maravilhoso e Baby.

Fa-tal: Gal a Todo Vapor (1971)

Esse disco duplo é fruto de uma série de shows que Gal fez no Rio de Janeiro naquele ano e é a grande virada de chave na carreira da baiana, já que Gilberto Gil e Caetano Veloso estavam exilados em Londres nessa época, e ela foi uma das únicas vozes da contracultura que restou no Brasil.

Gal, que morava em São Paulo, se mudou para o Rio de Janeiro e se juntou com nomes como Jards Macalé, Waly Salomão e Paulo Lima para montar um show que acabou se tornando também um ato político e fez dela a “musa do desbunde”. A gravação crua do ao vivo nos faz adentrar naquele universo da época e os erros e improvisações do álbum (ruídos, improvisos, violão caindo no chão) fazem parecer que nós estamos no Teatro Tereza Raquel. Este é um disco fundamental não só para a carreira de Gal como também para a história da música popular brasileira.

Ouça: Vapor Barato, Pérola Negra e Dê um Rolê.

Índia (1973)

É o último disco da fase tropicalista de Gal Costa. O álbum tem direção musical de Gilberto Gil e já causou logo no seu lançamento: a capa dele foi censurada pela Ditadura Militar, o que obrigou a gravadora a vender o vinil num plástico azul. Índia tem um repertório de composições que vão de Tom Jobim a Lupicínio Rodrigues e conta com Pontos de Luz, música que foi revisitada em 2016 após virar sample em Lite Spots, do produtor Kaytranada.

Comparado com os primeiros discos de Gal, esse é mais limpo e menos rock’n’roll. Aqui ela explora a potência da sua voz com maior suavidade e deixa um pouco de lado aquela aura a la Janis Joplin, apostando ainda na psicodelia, porém de uma maneira mais sofisticada, voltando a beber de referências da bossa nova, sem deixar de lado a ousadia da Tropicália.

Ouça: Pontos de Luz, Da Maior Importância e Presente Cotidiano.

Cantar (1974)

Se Gal havia começado a voltar às suas origens da bossa nova em Índia (1973), em Cantar (1974), ela entra de cabeça nesse universo. Porém, é necessário dizer que mesmo que ela tenha resgatado essas referências do passado, Gal não era mais a mesma. Aqui, a cantora baiana mescla o seu canto claro, afinado e com um lindo timbre à um cantar emocionado e “sujo”.

É como se Gal tivesse pego o melhor de cada fase até aqui e misturado. O resultado é um disco solar e ao mesmo tempo que é leve em sonoridade, soa profundo, entrando pro hall dos melhores álbuns da carreira de Gal. Vale lembrar também que ele teve um toque de Caetano Veloso na produção e os arranjos são de João Donato.

Ouça: Barato Total, Flor de Maracujá, Lágrimas Negras e O Céu e o Som.

Água Viva (1979)

Em 1978, com o começo da abertura política pós Ditadura Militar, Gal começa a se afastar do desbunde e da contracultura do tropicalismo e passa a mirar também o popular. Água Viva (1979) é um álbum essencial na carreira da baiana porque foi aqui que ela conquistou o seu primeiro disco de ouro e expandiu seu público.

O registro conta com composições de nomes como Caetano Veloso, Dorival Caymmi, Gilberto Gil e Tom Jobim e enfileira uma porção de hits no seu repertório. Em termos de sonoridade ele agrada a todos já que passa pelo forró, pelo baião e flerta até mesmo com o samba e o bolero. Aqui Gal prova que dá pra ser complexa e sofisticada mesmo sendo popular.

Ouça: Folhetim, Mãe e Paula e Bebeto.

Profana (1984)

Após 16 anos na gravadora Philips, Profana (1984) é o primeiro disco de Gal Costa na RCA (Sony Music). 1984, ano em que foi lançado o álbum, foi importantíssimo para a história política do Brasil e, claro, que Gal não iria se abster desse momento. Em Vaca Profana, uma das músicas mais icônicas desse álbum e da carreira de Gal, ela canta: “dona das divinas tetas, quero teu leite todo em minha alma, nada de leite mau para os caretas”.

Além dessa, Chuva de Prata, gravada com o Roupa Nova, é o outro sucesso contido neste álbum que une o DNA da contracultura com as baladas românticas. É um álbum diverso que flerta com a new wave, com o forró e até mesmo com as marchinhas de carnaval.

Ouça: Chuva de Prata, Vaca Profana e Topázio.

O Sorriso do Gato de Alice (1993)

É o disco mais relevante de Gal na década de 1990 e é responsável por trazer de volta a versão dela vanguardista e menos popular, emplacadora de hits, como vinha sendo nos últimos anos. Foi durante as gravações desse álbum que a mãe da cantora faleceu, por isso, o disco carrega vocais melancólicos, introspectivos e igualmente potentes e emocionantes. Em Nuvem Negra, ela canta: “passa nuvem negra, larga o dia e vê se leva o mal que me arrasou”.

Outro ponto alto relacionado a esse álbum é o show que foi dirigido por Gerald Thomas. Nele, Gal entrava no palco com roupas pretas como se estivesse de luto mesmo e interpretava Brasil, de Cazuza, com os seios à mostra, comemorando seus 50 anos. Esse ato causou grande alvoroço na época e produziu algumas das fotos mais icônicas da carreira de Gal.

Ouça: Nuvem Negra, Errática e Alcohol.

Recanto (2011)

Em 2011, no auge dos seus 66 anos, Gal Costa resolveu pisar em um território completamente novo. Recanto (2011), que saiu depois de um hiato de seis anos, foi composto inteirinho por Caetano Veloso. O baiano também produziu o álbum ao lado do filho Moreno. O produtor Kassin também se juntou ao time fazendo as programações eletrônicas que são um dos pontos altos do álbum que mistura trip hop, funk, tropicalismo, rock, música eletrônica e muita experimentação. Porém, tudo isso chega aos nossos ouvidos de forma minimalista. O disco não foi tão bem recebido pelas gerações que acompanham Gal desde os primórdios da sua carreira, porém ele foi o responsável por aproximar a cantora das novas gerações - tanto em termos de público como de cantores.

Ouça: Recanto Escuro, Tudo Dói e Neguinho.

Falando em novas gerações, Gal continuaria esse diálogo que começou em Recanto nos discos seguintes: Estratosférica (2016), A Pele do Futuro (2018) e Nenhuma Dor (2021). Mostrando que se manteve ativa, relevante e essencial para a música brasileira até os seus últimos dias.