É nos cinemas, bibliotecas, lojas de discos e revistas parisienses que se forma o caldo cultural em que Thomas Bangalter et Guy-Manuel de Homem-Christo se formaram ao longo de seus 28 anos de carreira. Inicialmente com um imaginário meio rock (influenciados por Velvet Underground, Jimi Hendrix, Stone Roses, Bowie…), quase óbvio para eles que nasceram em 1974 e 1975, aos quais acabam integrando ao conceito os fantásticos delírios de David Cronenberg e John Carpenter, ou Brian De Palma e o seu Phantom of the Paradise, longamente citados por eles em entrevistas.
Embora isso os torne adolescentes um pouco “diferentes” da média em termos de influências culturais, eles também não escapam do mainstream. Van Halen, Supertramp, MTV ou desenhos animados japoneses, cujas influências podem ser encontradas no filme Interstella 5555 (produzido em 2003 pela Toei Animation, o místico estúdio japonês por trás Albator ou Goldorak), e também no seu segundo álbum Discovery.
Daft Punk - One More Time (Official Video)
Daft PunkNa verdade, toda a carreira do Daft Punk pode ser vista como um longo remix da cultura pop dos anos 70 e 80. Um ângulo artístico que eles assumem plenamente: “A inovação não é o valor chave: a música é a transmissão de emoções, para que as pessoas dancem ou sejam felizes, e nem sempre é através de algo novo”, assegurou Thomas Bangalter. “Isso é o que nos interessa, mas cada artista é livre para ter a abordagem que quiser.”
Seu primeiro disco, Homework, mostra isso perfeitamente: dentro da capa do disco está a foto de um escritório cheio de referências, a revista Playboy, o Rex Club, templo do techno parisiense, foto dos Led Zep, do The Who, Kiss e ainda um vinil do Chic. A influência de Nile Rodgers é tamanha em Around the World que ela comenta com Bangalter alguns anos mais tarde “foi como gravar um disco do Chic só com um talkbox e tocar baixo em um sintetizador”.
This is house music
Mas Homework ainda continua essencialmente uma versão aumentada da cena house de Chicago dos anos 80. É possível sentir a mesma energia desde a primeira faixa Da Funk, feita em 111 BPM familiar (com o nítido Rollin’ & Scratchin’ em 130 no lado B para equilibrar), lançado pelo selo techno escocês Soma, e a liberdade na produção, feita no estilo “bedroom producer” com em particular a máquina de ritmo TR-909 e o sintetizador de baixo TB-303, duas máquinas Roland que fundaram o som do house e do techno. Os DJs e produtores norteamericanos também esculpem a maior parte de Teachers, título no qual o Daft Punk cita os pioneiros da cultura do club: Paul Johnson, Louis Vega, Green Velvet, Joey Beltram, Armando, Dave Clarke ou Romanthony (excêntrico cantor/produtor nova-iorquino que se tornará a voz de One More Time em Discovery), ao lado de Brian Wilson e George Clinton.
Como o duo parisiense também mergulhou nos anos 70 para pegar pequenos trechos de Barry White (Da Funk), Elton John (em Phoenix) e Billy Joel com sua música Just the Way You Are, maravilhosamente cortada, desconstruída e reconstruída em High Fidelity. Um trabalho perfeito? Nem sempre. Em Discovery, os Daft receberam críticas pelos empréstimos um pouco menos inventivos da soul/funk dos anos 70, desde Cola Bottle Baby de Edwin Birdsong (em Harder, Better, Faster, Stronger) até em I Love You More de George Duke, que serve de introdução para Digital Love, passando por Cerrone e o loop de Supernature em Veridis Quo.
Por outro lado, não há nada a dizer sobre a precisão excepcional do recorte de More Spell on You de Eddie Johns, que serve de base para One More Time, e Bangalter tira o melhor de Fate de Chaka Khan em Music Sounds Better With You com Stardust em 1998. “A genialidade não está na escrita, mas na reescrita”, comentou Nile Rodgers. “Nos discos do Daft Punk, posso ouvir a quantidade de trabalho que eles colocaram, essas decisões microscópicas às quais outros nem sequer pensam. É mais do que legal, é incrível.”
Ao trazer de volta os sons de guitarra chamativos dos anos 80, Discovery é na verdade mais um passo em direção ao funk e ao disco de antigamente. “Músicas como Digital Love ou Aerodynamic têm uma pegada rock e as pessoas se concentram nisso. Mas se você analisar faixa por faixa, as influências funk estão lá, seja mais raiz ou mais digital”, afirmou a dupla. “Manipular e brincar com nossas vozes cria atmosferas que lembram muitas coisas, sejam os Buggles ou Zapp. Mas todas essas referências lúdicas não foram amostradas, tocamos absolutamente todas as partes. Muitas músicas de house são baseadas apenas em um trecho que causa muito mais impacto do que a música completa. Essa é a ideia que queríamos aplicar à nossa abordagem, resgatar certas emoções e sentimentos sem nos perguntar se era descolado.”
Uma imaginação que os Daft parecem querer abraçar neste álbum, mas sem conseguir cristalizar completamente esse desejo (os únicos três convidados, Romanthony, DJ Sneak e Todd Edwards, são todos da cena house), o que levará ao acidente Human After All, de 2005, que foi uma repetição do Homework mas que não está à altura das ambições demonstradas até então.
RAM, uma máquina de voltar no tempo
Levará mais oito anos para que Guy-Manuel de Homem-Christo e Thomas Bangalter conceituem uma forma de expressar seu amor pela música dos anos 70 e 80, que haviam pegado com o pé esquerdo no primeiro álbum (principalmente por falta de meios). Com Random Access Memories (RAM), eles definitivamente viram as costas para o estilo DIY. “Computadores não são instrumentos”, afirmou Thomas Bangalter em 2013. “A criatividade humana é a interface definitiva. É muito mais poderoso do que um mouse ou uma tela sensível ao toque.” RAM é, então, concebido como uma homenagem a era de ouro da produção musical e aos lendários estúdios da indústria americana. Os Daft Punk pagam os notáveis estúdios californianos Hanson (onde foi gravado a faixa all-stars We Are the World), Capitol (que já recebeu nomes como Frank Sinatra, Nat King Cole e Michael Jackson), Conway em Hollywood, e ainda o Electric Lady Ladies (fundado por Jimi Hendrix) em Nova York.
Os franceses acabaram transcendendo o seu conceito artístico que remete ao passado, aproveitando o orçamento associado ao seu sucesso para construírem para si mesmos uma luxuosa máquina do tempo. “Ao gravar Random Access Memories, nos perguntamos: o que gostamos tanto nesses samples? Foram momentos de vida curtos, que duraram alguns segundos, mas incrivelmente ricos em emoções, contendo tantas histórias humanas, carregando uma memória tão grande. Parecia-nos óbvio conhecer todos estes músicos, estes engenheiros de som, que contribuíram para escrever a história da pop nos anos 70 e 80.”
Daft Punk - Lose Yourself to Dance (Official Version)
DaftPunkVEVOEles convidaram também musicos místicos, como o baterista John Robinson Jr, um dos maiores sidemen dos Estados Unidos, que trabalhou com Quincy Jones e em Off the Wall de Michael Jackson, e especialista na guitarra pedal-steel, um marco do rock west coast que os Daft Punk adotaram neste álbum, para melhor desviar o som. RAM permete também ao duo de realizar seu desejo de trabalhar com Nile Rodgers, em Get Lucky, e de organizar um tributo de 10 minutos ao mestre do disco que tanto os inspirou, Giorgio Moroder, em Giorgio by Moroder.
Neste disco, um ultimato em todos sentidos do termo, os Daft Punk celebram ainda um outro ídolo – talvez o maior de todo para eles –, convidando Paul Williams, ator/cantor que interpreta o personagem principal e assina a trilha sonora de Phantom of the Paradise. É inclusive Paul Williams, ao lado de Nile Rodgers, que falou em nome dos robôs na chuva Grammys que ganharam em 2014. E sete anos depois, é a melodia de sua colaboração, Touch, que encerra o vídeo de despedida do grupo, Epilogue, postado em 22 de fevereiro de 2021. Como se nada mais houvesse a acrescentar... até agora.