Conheça um pouco mais sobre as canções com eu-lírico feminino escritas por Chico Buarque de Hollanda.

No primeiro encontro de Maria Bethânia com a Mãe Menininha do Gantois, em Salvador, a ialorixá pediu à cantora baiana para que cantasse uma música. Desajeitada, Bethânia escolheu a canção Olhos nos Olhos, e ao final, a líder do Gantois perguntou:

- Menina, de quem é essa música? Quem escreveu isto? Não foi homem.

- Foi Chico Buarque de Hollanda.

Em seus mais de 50 anos de carreira, Chico Buarque já foi muitas coisas. Foi pai, pivete, divorciado, carnavalesco e até mesmo pós apocalíptico, mas de longe algumas das facetas mais conhecidas do compositor são as das suas mulheres. Lésbicas, prostitutas, separadas, cortejadas e vingativas são algumas das personagens que o carioca já encarnou.

Os primeiros registros do compositor sob essa ótica lírica foram em seu terceiro disco de estúdio, Chico Buarque de Hollanda Vol. 2, lançado em 1967, com as faixas Noite dos Mascarados e Com Açúcar, Com Afeto. A segunda música foi originalmente composta para Nara Leão, porém, no encarte do álbum Chico afirma ter insistido na inclusão da obra no LP, mesmo que ele não pudesse interpretá-la “por motivos óbvios”. A canção foi então cantada por Jane Moraes, que viria a fazer sucesso anos depois em dupla com seu marido. A gravação de Nara saiu no mesmo ano no disco Vento de Maio, tornando-se um dos grandes sucessos da cantora.

Com açucar com afeto - Nara Leão

José Wainer

5 anos e um exílio na Itália depois, Chico Buarque se reuniria com Caetano Veloso na Bahia para gravar o disco Caetano e Chico Juntos e Ao Vivo no famoso Teatro Castro Alves, em Salvador. O compositor parece ter mudado de ideia, pois nesse dia executaram (ora de maneira conjunta, ora sozinhos) três de suas canções com o eu-lírico feminino: Atrás da Porta, Bárbara (num antológico dueto) e Ana de Amsterdam. As duas últimas foram gravadas em estúdio por Chico no ano seguinte, no disco Calabar - O Elogio da Traição.

Chico Buarque e Caetano Veloso - Cotidiano

Solange Menezes

Os anos 1970 e 1980 foram o auge do eu-lírico feminino de Chico, com muitas de suas canções tornando-se conhecidas na voz de outras cantoras. Sua principal intérprete foi Maria Bethânia, que gravou Olhos nos Olhos (1976), Teresinha (1977) e O Meu Amor (1978), além de um disco ao vivo com o carioca em 1975 que inclui Bem Querer e Sem Açúcar.

Outras cantoras que deram voz à sua música nessa época foram Elis Regina, que gravou Atrás da Porta (1972), Tatuagem (1976) e Joana Francesa (1979), e Gal Costa, com Folhetim (1978), Mil Perdões (1982) e A História de Lily Braun (1983). Além delas, destacam-se também as gravações de Não Existe Pecado ao Sul do Equador, de Ney Matogrosso (1978), Palavra de Mulher, de Elba Ramalho (1988), e Anos Dourados, dueto de Chico e Tom Jobim (1987).

Gal Costa - Ensaio - "Folhetim"

TramaTV

Apesar da mensagem de algumas de suas letras não mais refletirem os valores de muitas mulheres, é inegável que o uso do eu-lírico feminino diz muito sobre a habilidade de Chico como letrista. Sua capacidade de entender e conseguir retratar de maneira poética temas de um universo tão distinto ao seu é a marca de um escritor versátil e sensível, além de enriquecer sua obra como um todo. Não somente as mulheres, mas a habilidade de conseguir encarnar personas tão distintas colocam Chico num dos mais altos patamares da música popular brasileira.